domingo, 21 de dezembro de 2014

A festa da carne







Com 52 anos, Sérgio era normal. Baixinho, gordinho, careca. Não, careca não. Mantinha com orgulho alguns fios como uma coroa de louros guardando uma mente campeã. Agarrava-se aos pequenos e finos lembretes de uma juventude perdida com garras de quem não desiste da batalha até que esteja prostrado ao chão esvaindo-se em sangue.

Ele que valorizava acima de tudo os cada vez mais esparsos fios não entendia esses moços passando gel nos cabelos, deixando-os espetados, duros, esquisitos. Não entendia muitas coisas, jovens usando brincos, anéis, pulseiras. Que absurdo! Alegrava-se por só ter filhas, três. Fazia de tudo para educar bem suas meninas e sempre se viu próspero, satisfeito, orgulhoso até que não mais. 

A mais nova namorava um rapaz com cabelos que chegavam até a cintura, de um loiro brilhante, todo ondulado. Quando vira Érica beijando o moço em frente à garagem, quase tivera seu terceiro infarto. Também, ao presenciar sua filha com outra garota, quem resistiria? Naquele momento sentiu como se nada mais fizesse sentido. Não fazia mesmo. Namorar um homem, “homem”, com cabelo na cintura não era muito melhor e o rapaz ainda dizia que não gostava de trabalhar. Um vagabundo, achava que era artista. Vagabundo, isso sim! Érica tinha 19, Igor, 17 e ela passava todos os fins de semana na casa dele, dormindo no mesmo quarto. Onde já se viu? Uma moça dormindo no mesmo quarto que o namorado. Imagina o que a família dele pensava dela, Érica, e o que pensava dele, Sérgio. Com certeza viam-no como um pai relapso. Ele não sabia o que fazer, tentava conversar com a garota, mas ela somente o encarava com desdém, isso quando não decidia ignorá-lo e deixa-lo falando sozinho.

Eliana, a do meio, tinha 25 anos e era mãe solteira. Cristal tinha 8. Cristal, veja só que maldade dar esse nome à menina. Eliana fugira de casa com 16, voltando apenas quando mal conseguia andar tão grande a barriga. Em ambas as ocasiões, quando ela fugiu e quando voltou, Sérgio quase tivera seu segundo infarto. Agora fazia faculdade, o que poderia ser bom, mas escolhera um curso de arruaceiros, Ciências Sociais, nunca teria uma vida decente. Eliana morava em uma república para mães dentro da universidade e Cristal, crescendo em meio a vagabundos, também estava perdida. As duas, Eliana e Cristal, faziam tratamentos para deixar seus cabelos crespos. Afro, era o que diziam. Sérgio não entendia porque suas meninas queriam ser negras, nada contra, é claro, mulheres negras eram belas e voluptuosas, mas não era natural alterar a aparência dessa maneira. 

Elisa sempre fora o xodó do papai. Lembrava-se do nascimento da primogênita com uma clareza e felicidade que não dispensava a nenhuma outra ocasião. Segurar aquele bebê rosado e cabeludo em seus braços havia sido o ponto alto de seu pouco mais que meio século de vida. Tinha planos para a filha, queria que fosse a mais bela, a mais inteligente, a mais feliz. E ela correspondia, era a primeira na escola, formou-se com um ano de antecedência, adorava vestir-se toda de rosa, com lacinhos encantadores, tudo perfeito. Após graduar-se em pedagogia aos 21 anos, casou-se com um rapaz decente. Pelo menos era o que parecia. Paulo tinha feito administração, possuía um bom emprego. Com um corte de cabelo militar, era um provedor. A esperança de Sérgio restava nesse casal pacato, sem filhos infelizmente, mas de boa índole mesmo assim. 

Sua longa vida parecia fazer parte de outra atmosfera, não eram só as filhas mais novas que o decepcionavam, era o estado do mundo. Trabalhava em uma repartição pública do sistema judiciário. Seu diretor era um rapazote de 34 anos que andava por aí de óculos escuros como se fosse um jovem Tarcísio Meira a todo o momento tirando a franja dos olhos num movimento arrogante de cabeça. Marcelo preocupava-se tanto com a aparência que não percebia o que se passava sob seu domínio. Aquele lugar estava infestado de pessoas despudoradas, principalmente as mulheres que falavam livremente sobre suas experiências mais íntimas. Sérgio ouvira de Marlene, uma mulher da sua idade, a história mais absurda já proferida entre aquelas paredes. Não, ela não tinha contado nada para ele, Sérgio apenas escutara tudo quando decidira fazer uma pausa. Gostava de sentar-se no banquinho ao lado da pequena geladeira, não era sua culpa se Marlene imaginara-se sozinha com a colega e falara livremente. Ele não emitiu um som, afinal gostava de tomar seu café em silêncio. 

Marlene trocava de parceiros periodicamente, quase todos arrancados da internet. Vivia gabando-se de aventuras, como se elas a tornassem superior, Sérgio ouvia pedaços aqui e ali, mas nada tão ultrajante quanto o caso da tricofilia. Tricofilia, Sérgio pesquisara, era uma perversão que consistia em excitar-se com pelos, em particular os pubianos. Marlene estava saíndo com um desses depravados e parara de se depilar por ele. Ela usava calcinhas de tamanho regular, nada de fio dental ou qualquer tipo de lingerie, com os pelos ganhando espaço em suas coxas roliças. Mas não, isso não era suficiente, Sérgio fora obrigado a ouvir mais. O depravado levara uma feliz Marlene a uma casa onde se reuniam outros depravados ávidos por pentelhos! O pior de tudo é que a casa ficava no mesmo bairro em que Sérgio residia com a família. Tudo perdido. O mundo todo errado. As pessoas sem valores, sem vergonha na cara, sem dignidade. 

Ultrajante, nos jornais pais matando filhos ou pior, filhos matando pais. Só violência e pouca vergonha. Perdera duas de suas princesas para esse mundo triste e feio. Só restava Elisa, era o que pensava, por isso, quase teve seu quarto infarto quando viu a filha saindo com o marido daquela residência de tarados. Seu bebê naquele lugar de depravação. Desconsolado, voltou para casa em frangalhos, só não chorou porque era homem. Quando chegou, encontrou o cabeludo esperando Érica terminar a maquiagem, o rapaz percebeu sua consternação e perguntou o que havia se passado. Sérgio não era de ferro e acabou contando tudo, o mundo estava perdido, ninguém o respeitava, todos riam dele no trabalho, as filhas desencaminhadas, não sabia o que fazer. O moço riu e disse que aquilo poderia ser facilmente resolvido, Sérgio precisava de um novo look, mais moderno, assim as pessoas o deixariam em paz. Contou como seu pai havia resolvido tudo e entregou-lhe um cartão. Perucas Gislaine. Sérgio achou aquilo tudo ridículo, mas sua vida também andava ridícula, então resolveu tentar. Foi atendido por uma mocinha simpática com enormes unhas vermelhas. Experimentou tantos estilos de cabelo que até ficou um pouco tonto. Decidiu-se por uma peruca de PVC que cabia em seu orçamento e tinha um topete generoso. Vestiu-a e saiu da loja. Tinha esperança, quem sabe agora poderia voltar a fazer parte do mundo.

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