quinta-feira, 19 de março de 2015

É o acordar que nos mata





Suzie era uma mulher. Sua maior característica era ser trouxa. Todos viviam dizendo a Suzie o quanto ela era trouxa e ela agradecia com os olhos cheios d’água. Porque era trouxa. No trabalho, oferecia ajuda a qualquer um que indicasse precisar. Ajudava quem não queria trabalhar por causa de problemas pessoais, por acumulo de serviço, por problemas de saúde, por preguiça. Ajudava sem ninguém nunca pedir e, quando ouvia o quão errado tinha realizado as tarefas, sentia-se muito grata por trabalhar com pessoas tão honestas que sempre diziam a verdade. Também se sentia mal por ser inútil e não conseguir fazer as coisas direito. E jurava melhorar. Era trouxa.

O namorado de Suzie era muito bom, ficava com ela apesar de ela não agradar a seus pais, de não saber cozinhar. Ficava com ela apesar de ela estar sempre triste e não lhe dar atenção suficiente. Ou dar muita atenção quando ele não queria nenhuma. Às vezes, até saía com Suzie aos finais de semana. Era realmente uma pessoa admirável, ela pensava, surpresa por um homem como aquele tê-la aceitado em sua vida, exceto na maioria dos finais de semana ou quando ele tinha alguma outra coisa para fazer. Ficava agradecida por ele, tão generoso, demonstrar interesse por alguns assuntos dos quais Suzie gostava. Ele perguntava a ela sobre livros mesmo odiando ler. O rosto de Suzie se iluminava e seus olhos se enchiam d’água pelo esforço que o namorado fazia. Nessas ocasiões, ficava tão feliz que era egoísta e passava vários minutos falando sobre seu assunto preferido. Quando, pouco depois, ele reproduzia tudo, mas tudo mesmo, que ela havia dito em um post no facebook, ficava cheia de orgulho por ele tê-la escutado com tanta atenção. O orgulho era tanto que nem se incomodava de não ver seu nome ali. Trouxa.

Quando descobria que ele havia comparecido a um evento literário com os amigos, ficava feliz pela benção de namorar alguém tão cheio de luz que atraía pessoas boas e interessantes. Gostaria de ir com ele, não compreendia porque ele não a convidava. Mas tudo bem, era muito grata pela constante presença do namorado, ainda que só em pensamentos. A cada dia, Suzie se esforçava para se tornar digna daquele homem. Era também por isso que, quando eles se beijavam e ele dizia que fazer aquilo com ela era chato, ela engolia o choro e se esforçava muito, mas muito mesmo, para agradar ao namorado. Tentava fazer tudo que ele queria e pedia. Tentava adivinhar seus pensamentos, suas vontades. Ele não merecia Suzie como namorada. Não, ele merecia muito melhor. A cada instante ela sabia disso e tentava ser melhor. Era trouxa. 

Em casa também era assim. A família de Suzie se entristecia por ter um membro tão egoísta. Alguém que às vezes saía de casa, que às vezes não queria lavar a louça, que às vezes sentia-se fraca demais para levantar da cama. Suzie sabia o quão em dívida estava para com a família e tentava chorar baixinho para não incomodar ninguém. Quando sentia os soluços presos na garganta, ia tomar banho para que o barulho da água ocultasse seu desespero por se saber em falta. Nesses dias, todos reclamavam do tempo que ela passava com o chuveiro ligado e Suzie sentia culpa. Sentia culpa por não conseguir ser uma boa pessoa. Era ela que pagava a maior parte das contas, mas mesmo assim compreendia o quanto era um fardo para as pessoas que se viam obrigadas a conviver com ela. Trouxa.

Quase nunca ia ao médico, mas de vez em quando desmaiava, assim, no meio da rua, atrapalhando muita gente ao mesmo tempo. Os médicos faziam exames e perguntavam sobre sua saúde. Ela sempre respondia que estava tudo bem, não queria incomodar. Não reclamou nem mesmo quando erraram o acesso venoso e Suzie quase perdeu o braço. Sentiu muita dor, mas imaginou que era frescura, como sempre ouvia dizer, e ficou calada. Quase sempre saía com encaminhamento para um psiquiatra. Não ia. Era trouxa.

Numa semana especialmente difícil devido à inaptidão de Suzie, ela foi repreendida pela chefe porque não havia dado conta de seu serviço. Foi repreendida pelos colegas porque não os havia ajudado o suficiente. Foi repreendida pelo namorado porque havia aparecido em sua casa sem aviso prévio. Foi repreendida pela família porque havia chegado em casa tarde. Suzie não chorou. Suas lágrimas não haviam secado, mas ela não chorou. Na manhã seguinte, pegou o ônibus na direção contrária ao trabalho e foi até a represa. Lá, costurou pedras em sacos de estopa que vestiu como se fossem um casaco. Certificou-se que ficariam firmes em seu corpo e caminhou com dificuldade pela água. Pensou que é o acordar que nos mata e sorriu. Nunca mais foi encontrada. Foi a tarefa que melhor cumpriu na vida. Pena que não estava lá para ver. Muito trouxa.

2 comentários:

  1. Não acho que esse pobre diaba era trouxa, era só boa demais para e com seus pares... Tão boa que ela não queria se vingar, queria só fazer a vida dos outros melhor, mesmo que isso significasse acabar com a própria...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Esse é o olhar de quem se aproveita de pessoas boas demais. Me pergunto se vale a pena ser assim. A personagem definitivamente não era boa para si mesma. Acho que esse tipo de bondade pode incentivar comportamentos aproveitadores. O ideal não é tentar ser justo, ou seja, bom para si E para os outros em equilíbrio?

      Excluir